Mesmo para os diretores mais experientes, um dos maiores desafios enfrentados ao levar para as telas de cinema a biografia de uma figura pública muito importante é retratar essa pessoa sob uma visão imparcial, de maneira que não se destrua ou exalte sua personalidade. Aliás, este não é um desafio apenas para o cinema: a literatura é cheia de casos semelhantes. Em Lolita, de Vladimir Nabokov, por exemplo, o autor conduz tão bem a história que ao final do livro sentimos uma espécie de compaixão pelo pobre professor Humbert – mesmo detestando seus atos.
J. Edgar, do diretor Clint Eastwood, conseguiu a difícil façanha de retratar a vida conturbada de uma das figuras mais poderosas dos EUA de uma forma sincera. Ao longo de pouco mais de duas horas, somos apresentados a John Edgar Hoover (Leonardo DiCaprio), um advogado que ao longo de quase cinco décadas foi o diretor do FBI, a mais importante e conhecida organização policial do mundo. O filme narra a rápida ascensão do jovem Edgar dentro do Departamento e seu possível envolvimento afetivo com Clyde Tolson (vivido por Armie Hammer), que seria seu braço direito durante toda a sua carreira.
Edgar não é considerado o patrono do FBI à toa. Ele permaneceu no comando da organização durante o mandato de 8 presidentes norte-americanos – e durante sua direção, o FBI se tornou a força policial mais forte do mundo. Sob sua liderança, durante a década de 1930, o FBI declarou guerra a criminosos famosos, como John Dillinger (considerado o inimigo público número 1 na época), Pretty Boy Floyd e outros. Edgar também transformou o FBI em uma organização moderna: trouxe para os tribunais métodos científicos de investigação que são utilizados até hoje pelas forças policiais de todo o mundo – é, inclusive, considerado o revolucionário que trouxe a biometria para a utilização nas forças armadas.

Armie Hammer (à esquerda) e Leonardo DiCaprio que vivem, respectivamente, Hoover e Tolson. Apesar de nunca asumir, especula-se sobre o envolvimento pessoal dos dois agentes.
Se, entretanto, John mostrava-se um verdadeiro herói norte-americano, muitos duvidavam de seu talento como diretor da organização – e mesmo de seu caráter. O próprio filme questiona se os grandes feitos atribuídos a Edgar foram, de fato, realizados por ele. Em relação ao seu comportamento, Edgar nunca foi casado – mas frequentemente era visto ao lado de Tolson, o que aumentava as especulações sobre sua homossexualidade. Sob seu caráter, já no fim de seu mandato, Hoover era acusado de passar mais tempo tentando destruir figuras com quem não simpatizava do que combatendo o crime propriamente. Na política, por exemplo, Edgar enfrentava um novo embate a cada troca de presidente devido, sobretudo, ao fato de manter um arquivo confidenial com informações (verdadeiras, supostas ou falsas) de várias personalidades famosas que poderiam destruir suas reputações. Com a morte de Hoover, a maior parte destas informações se perderam – apesar de que algumas poucas foram encontradas ao longo dos anos.

DiCaprio, como Hoover em seus últimos anos. A equipe de maquiagem do filme tem sido bem criticada pelo exagero dado à produção.
O filme de Clint não chega a ser um clássico. Longe disto, J. Edgar dividiu opiniões da critica e do público. Enquanto alguns consideram a produção excelente, outros torcem o nariz para a história, alegando a falta de enredo na narrativa, a maquiagem extravagante (o que não deixa de ser verdade), a iluminação e fotografia em partes inadequadas e, obviamente, a atuação de seus atores. Enquanto a veterana Judi Dench arranca elogios por sua interpretação de Anna Marie, a mãe puritana de Edgar, Leonardo DiCaprio divide opiniões. Certamente, não foi a melhor atuação de DiCaprio – contrariando a muitos que acreditavam que o ator seria indicado ao Oscar – , mas também não se pode acusa-lo de não ter deixado sua marca no personagem.
J. Edgar é uma trama para poucos. Ao que tudo indica, no Brasil o filme é recebido sem muito alarde. John não é tã0 conhecido no país por seus feitos grandiosos – talvez passará a ser agora com o longa (não por sua contribuição às forças policiais, mas como “o diretor homossexual do FBI”). Uma lástima. Clint consegue fazer um filme honesto que não julga sua personagem por antecipação, mas nos dá plenas condições de até mesmo sentir compaixão por uma figura como Hoover – feito possível somente a grandes artistas.