Estrada Propositalmente Liberada

Dizem por aí que o meio artístico é regrado a álcool e drogas. Dizem também que boa parte dessa galera é promíscua. Dizem que alguns são meio loucos e não tem um referencial na vida. Dizem que a juventude é perdida. Agora, como querer levar tudo isso ao cinema de forma propositalmente descarada, mas sem o olhar crítico do puritanismo?

Foi com um certo pé atrás que assisti, nesta última semana, ao novo trabalho do diretor brasileiro Walter Salles, o longa Na Estrada. Trata-se da adaptação da obra On The Road, de Jack Kerouac, um dos maiores best-sellers símbolo da contracultura, escrito durante a década de 1950 e que foi eleito posteriormente como um dos 100 melhores livros em inglês de todos os tempos. E sim, foi um dos principais marcos da geração beat, aquela que deu uma nova cara à cultura mundial, pregando liberdade sexual, rejeição ao materialismo e um certo apelo budista.

A geração “beat” e seu descontentamento com a vida é o plano de fundo de “Na Estrada”.

O longa conta a história do aspirante a escritor Sal Paradise, filho de uma família burguesa que, após a morte do pai, conhece Dean Moriarty (um jovem vagabundo de Denver) e sua esposa, Marylou. Através da figura de Dean, Sal é introduzido em um universo onde tudo é liberado (álcool, drogas e, especialmente, sexo) sem constrangimento algum. É neste cenário, que Sal e seus amigos embarcam em uma aventura na busca incessante por algo que nenhum deles consegue identificar muito bem, mas que não deixam de lado por nada. A fita (produzida também por Francis Ford Coppola, da épica trilogia O Poderoso Chefão) foi amplamente elogiada pela crítica – e, de fato, há muitos pontos que tornam Na Estrada um filme ao qual você deve assistir.

Kristen Steward no papel da jovem Marylou. Será que agora ela vai?

A começar, temos a escolha de um elenco  inspirado, especialmente o protagonista vivido por Sam Riley, que conseguiu transmitir toda a serenidade peculiar à sua personagem. Também surpreende a atuação de… Kristen Stewart que, na pele de Marylou, conseguiu ser incrivelmente sensual sem ser apelativa. E, acredite, para eu dizer isso (eu, que tanto a critiquei), é porque sua atuação realmente mereceu. Mas os destaques do filme ficam por conta de Garrett Hedlund, na pele do (não apenas fisicamente) sedutor Dean , e de Tom Sturridge, com seu personagem Carlo, um homossexual deprimido e apaixonado platonicamente por Dean.

Das cenas de nudez ao sexo homossexual, nada é poupado em “Na Estrada”. Aqui, Sam e Carlo, personagem de Tom Sturridge.

Da bela fotografia do francês Eric Gautier (de Diários de Motocicleta) à câmera certeira de Salles, o filme impressionou a crítica, mas tende a não empolgar o público (tirando o fato de ter uma estrela teen no elenco). E a razão é simples: Na Estrada é um filme propositalmente (ainda que não assumido) cult. Não é para qualquer um. Ao longo de mais de duas cansativas horas, o longa não apresenta uma história rígida; tudo o que acontece são apenas relatos das experiências excêntricas de seus protagonistas. As cenas, individualmente, em nada contribuem para criar uma história concreta, mas ajudam a mostrar a visão que seus personagens tem do mundo ao seu redor. Ou seja, os personagens são concebidos através de suas ações e reações, não há espaço para explicações. E é aí que reside a maior qualidade de Na Estrada.

O protagonista Sal (à esquerda) e seu amigo (porra-louca) Dean. Fica-se a pergunta: pra quê tudo isso?

O filme retrata este crítico período da vida de suas personagens mas sem julga-los em nenhum momento. Tudo ali é mero reflexo de sua busca por algo que nenhum deles sabem bem o que é, revelando toda sua insatisfação consigo mesmos e com o mundo. Salles conseguiu fazer uma obra onde não há certo ou errado: tudo concorre para a formação de suas personagens, ainda que muitas cenas sejam soltas. Talvez justamente por essa falta de julgamento moral e ético é que Salles em nenhum momento ameniza o tom da narrativa (tentando deixa-la mais comercial). Nada é muito explícito, mas tampouco gratuito. Das cenas de nudez e uso de drogas às sequencias de sexo (inclusivo sexo a três e homossexual), tudo é mostrado com um pudor reservado que, se cortado, certamente não conseguiria transmitir toda a essência de vida desses personagens.

“Na Estrada” se torna, aparentemente, o típico filme com pretensôes “cults”: apenas uma pequena parcela vai ama-lo, assim como tantos outros filmes, como “Diário de um Jornalista Bêbado” ou “Medo e Delírio em Las Vegas”.

É talvez por estes motivos que muitas pessoas possam não gostar de Na Estrada. Apesar de bom, não é o típico filme comercial que todos (ou a maioria) esperam assistir nos cinemas. Assim como muitos produtos de caráter cult, Na Estrada poderá ser celebrado como um grande tributo à obra de Kerouac, mas não se pode dizer que o filme se sustente como obra cinematográfica. Vai ser uma daquelas produções que poucos amarão e a maioria vai achar chato – e, de certa forma, no mundo em que vivemos, toda essa história possa até parecer realmente sem fundamento. Mas se a inserirmos dentro do contexto em que foi concebida, teremos uma breve noção de toda a sensibilidade artística que podemos tirar da obra de Salles. No mais, é uma estrada em que se vale a pena embarcar – mesmo que ela não te leve a um lugar muito bem especificado…

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