“Noé”: Grandioso no Discurso, Medíocre Como Cinema

Após o sucesso épico de Cisne Negro, o cineasta Darren Aronofsky arregaçou as mangas e encarou a empreitada de levar às telas de cinema uma das passagens bíblicas mais conhecidas do público: o drama de Noé, homem que, segundo o livro de Gênesis, foi escolhido por Deus para criar uma gigantesca arca e ali manter-se seguro enquanto ocorre a destruição do mundo por um fenômeno natural (ou divino?) que teria ocasionado uma chuva constante na Terra durante 40 dias. Claro que retratar uma história como esta, com personagens já conhecidos do público e carregada de questionamentos sobre sua veracidade, não é uma tarefa fácil. Em 2004, Mel Gibson decidiu recriar a trajetória de Jesus Cristo em suas últimas horas de vida – gerando opiniões bastante controversas do público e da crítica. Com Noé não seria muito diferente.

80Antes de tudo, vou partir direto para uma análise crítica sobre os aspectos de Noé como obra de arte, como cinema. Noé, apesar de grandioso em sua essência, é um produto fraco. Não que Darren tenha feito um filme ruim, mas diante do que já fez (Cisne NegroO LutadorRéquiem Para um Sonho), o cineasta não entregou nada alem de um blockbuster que, sob certa forma, vem ao encontro dos anseios da indústria hollywoodiana, com claros propósitos de ser um grande campeão de bilheteria e tudo o mais – vide a propaganda massiva em torno de um filme cuja história já é batida. Não pesquisei a fundo para saber se este propósito foi atingido, mas posso dizer que o público se empolgou – em plena segunda-feira pós-estréia, assisti Noé em uma sessão lotada, com um público com olhar atento e muito variado.

Mas bilheteria, como sempre argumento, não é termômetro para se avaliar uma produção. Noé é um longa de mediano para fraco – com forte propensão ao último. Arrastado, é um filme de quase 2 horas e meia que só começa a partir de 1 hora e 20 minutos – para dar ao telespectador uma sequência de pouco menos de 10 minutos de muita ação para voltar a um marasmo que acompanha todo o restante da fita. É óbvio que fica muito difícil criar alguma surpresa ao público quando o roteiro já é conhecido, mas Noé é uma frustrada e  ingênua tentativa de tentar recriar uma história com pouco mais de 3 páginas em sua leitura original para uma produção com quase 2 horas e meia de duração, ainda mais na Hollywood com seu senso urgente de espetáculo e oportunismo. O que parece é que durante todo o filme o cineasta tentou trazer uma grandiosidade ao fato, como forma de tornar a missão de Noé um ato colossal (como o deve ter sido) – mas o elemento “humano” dentro disso ficou de fora, impedindo o espectador de se deixar cativar pela trama.

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A começar porque, de cara, o filme é excessivamente massante. A trama é, definitivamente, pouco movimentada. Tecnicamente, também, os efeitos visuais são questionáveis e mal aproveitados. A cena da entrada dos animais na arca e o próprio dilúvio em si (que provavelmente exigiram milhões de dólares gastos em computação gráfica) são momentos apenas de deslumbres visuais mínimos. A sequência em que Noé explica à família a origem da vida na Terra (misturando Criacionismo e Evolucionismo) parece ter sido retirada da abertura da série The Big Bang Theory. Depois disso, o elenco é lastimável. Russell Crowe, no papel do protagonista, é uma das poucas coisas “medianas” dentro de um grupo de atores em péssimas atuações. Mas o mérito do elenco não é culpa exclusiva dos atores, mas também da maneira como seus personagens foram formulados. Jennifer Connelly, como a esposa de Noé, é uma mulher orgulhosa, acreditando firmemente que somente sua família é livre das iniquidades do mundo. Emma Watson, como Ila, é uma ninfetinha com problemas de fertilidade e bastante saidinha, se considerarmos a época da narrativa – alem de causar uma espécia de triângulo amoroso com os filhos de Noé. Aliás, Logan Lerman é Cam – no longa, um adolescente virgem louco para perder o cabaço.

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Mas a maior inverossimilhança é a própria personalidade de Noé. O personagem que na Bíblia é uma espécie de herói de toda a humanidade assume aqui uma versão fundamentalista, dividido entre o seu lado “humano” e as instruções divinas que deve seguir. Trata-se de uma boa sacada de Darren para trazer um pouco mais de “tempero” a  uma história que, em outras circunstâncias, passaria facilmente despercebida em Hollywood. O problema é que esse tom visceral do personagem título é forçado, exagerado e totalmente fora do contexto original da história. “Ah mas o filme é levemente inspirado na passagem bíblica…”, vão dizer alguns. E até concordo, afinal é necessário a inserção de alguns pontos novos para que a trama sobreviva – mas desde que estes pontos sejam suficientemente embasados para sustentar uma narrativa plausível. Noé passa de herói de uma religião à cristão obcecado, capaz dos atos mais extremos (mesmo que contra sua própria família) para cumprir os preceitos divinos em que tanto acredita. (OBS.: isso é porque eu não mencionei que Noé é ajudado por uns guardiões divinos enviados por Deus, uma espécie de Megazord feito de pedra. E isso é sério…)

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Se há, no entanto, um ponto favorável no filme, são as reflexões que o mesmo proporciona. Apesar de cair em um discurso ecológico visivelmente batido, Darren (que assina o roteiro ao lado de Ari Handel, de Fonte da Vida, de 2006) levanta um questionamento sobre a queda de uma sociedade diante da corrupção, da violência e da iniquidade como justificativa para um castigo divino, segundo os preceitos do Criacionismo. É impossível não traçar diversos paralelos com a situação atual de nossa sociedade, onde os discursos religiosos extremistas são, muitas vezes, a causa da separação e ódio entre os povos. As ações de caráter fundamentalista de Noé (incluindo rejeitar e matar a própria família ou não salvar uma jovem da morte para manter sua fé em Deus e a missão que o seu Senhor lhe deu ativa) são visivelmente uma crítica às ações extremistas de grupos que pregam o amor, o bem comum e a bondade – práticas típicas de um bom “cristão” mas que são seguidas apenas na teoria. Como cinema, Noé pode não ser tão grandioso quanto parece – porém, é inegável seu valor como estudo e reflexão sobre o rumo do homem na Terra. Com Noé, Aronofsky faz um filme que é grandioso no discurso, mas medíocre para sua filmografia.

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