Deus da Carnificina (Carnage)

Hipocrisia. Assuma: você é hipócrita. A verdade incontestável é que todos somos capazes de ter pensamentos politicamente corretos mas que podem ser facilmente manipulados quando se trata de defender nossos próprios interesses. Deus da Carnificina, de Roman Polanski, segue essa temática e consegue, ao longo de menos de uma hora e meia, levar o espectador a uma série de reflexões sobre o comportamento humano.

Lançado em dezembro de 2011 e filmado durante o período de prisão domiciliar de Polanski na Suíça, Deus da Carnificina levantou debates infindáveis na época de sua estreia. Houve quem o considerasse a pior obra do cineasta e se quer poderia ser considerada “cinema de verdade” – afinal, o longa é baseado na peça Carnage (também título original do longa), de Yasmina Reza, e levou todo o seu evidente ar teatral às telas de cinema. Por outro lado, muitos saíram em defesa de Roman, alegando que este seria seu filme “mais cinematográfico” – justamente pelo desafio da direção dentro de um único ambiente. No entanto, Polanski conserva a estrutura teatral da história, direcionando a visão do público – principalmente através dos enquadramentos ao longo do filme, fazendo com que o espectador observe aqueles personagens como um voyeur. A câmera aqui funciona quase como uma espécie de “olho mágico”, o que ajuda a distanciar o Deus da Carnificina da armadilha do teatro filmado.

1Na trama, acompanhamos o encontro (a contragosto) de dois casais com o intuito de buscar uma solução amigável para a briga entre seus filhos pré-adolescentes. O primeiro casal é formado por uma professora preocupada com as desgraças no continente africano e um simplório vendedor de artigos domésticos; já o segundo casal, é composto por um poderoso advogado e uma corretora de investimentos. Conforme o tempo avança, os nervos aumentam e o que era para ser uma tentativa de selar a paz entre as crianças torna-se um palco para intermináveis discussões, onde todos os personagens abandonam a civilidade e deixam cair suas máscaras, revelando a hipocrisia moral daqueles indivíduos.

Está aí um dos méritos de Deus da Carnificina: proporcionar ao espectador a oportunidade de observar a caminhada do ser humano rumo ao caos. A narrativa mantem um ritmo frenético em seu roteiro e montagem, que permite que os personagens se provoquem, aticem um ao outro, peçam desculpas, se desrespeitem. O espectador, diante da tela, tem prazer ao acompanhar a involução da compostura dos dois casais diante da proteção de seus interesses. Com isso, o filme se torna quase uma espécie de cinema “catarse”.

Longe de ser uma comédia escrachada, Deus da Carnificina fornece bem mais do que alguns risos. Em um filme onde a polidez dá lugar à progressiva degradação dos relacionamentos humanos, é interessante ver os dois casais aparentemente civilizados trocando farpas, se rebaixando e dizendo aos quatro ventos tudo aquilo que pensam mas não teriam coragem de falar em outras situações. Em um dos momentos mais cômicos, é possível ver Kate Winslet berrando “Ainda bem que meu filho bateu no seu, pois isso prova que ele não é um veadinho!” ou “Eu estou cagando para os seus direitos humanos!”, por exemplo. Deus da Carnificina critica as hipocrisias sociais com um leve cutucão e revela também o excelente domínio de tela de Polanski e seu incontestável talento como diretor de atores.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.