Ainda há poucos dias atrás, conversava com alguns amigos sobre carreiras, empregos, vocações e coisas do gênero. Na ocasião, comentei que acredito firmemente que toda pessoa nasce para fazer alguma coisa, todos tem um dom particular que, na maioria das vezes, nunca é descoberto ao longo da vida (devido a inúmeras situações ou problemas que não vou explorar aqui). Argumentei ainda que admiro muito as pessoas que conseguem seguir uma carreira de sucesso fazendo aquilo que realmente gostam – afinal, existe um grande abismo entre gostar do que se faz e se acostumar a fazer. Mais ainda: às vezes, deixamos de lado nossos sonhos para nos lançarmos em projetos que, apesar de não nos satisfazer por completo, garantem o nosso sustento ou nosso padrão de vida elevado – ou por várias razões, tentamos conciliar as duas coisas mas acabamos sempre optando por uma e abandonando a outra.
Todos estes pensamentos, veja você, me vieram à tona ao assistir Mil Vezes Boa Noite, novo filme de Erik Poppe (elogiado por seu longa anterior, Águas Turvas, de 2008) que chega aos cinemas nacionais nesta semana. Na trama, acompanhamos o drama da fotógrafa de guerra Rebecca, uma das mais renomadas profissionais neste ramo no mundo, que após sobreviver a um ataque durante um conflito em uma região perigosa, volta para casa e reencontra sua família. O dilema da artista começa quando ela tem de decidir continuar seu bem sucedido trabalho ou dedicar-se apenas aos seus familiares (esposo e as duas filhas), que vivem cada dia temendo perdê-la devido aos riscos de sua profissão.
Juliette Binoche dá vida à nossa protagonista, através de uma atuação segura, sóbria e intensa, oscilando de forma tocante cada nuance de sua personagem. Sua dor é latente; seu sentimento é real e o turbilhão de emoções de Rebecca atinge o espectador em cheio. O roteiro (parceria do cineasta com Harald Rosenløw-Eeg) também apresenta alguns momentos de silêncio e outros mais conturbados, onde o diretor faz uso de uma sonoplastia poderosa, marcada principalmente por sua trilha pontual – que acentua, sob certo ângulo, o sofrimento de Rebecca. Dessa forma, Mil Vezes Boa Noite se torna, por vezes, um filme angustiante, dolorido.
Mil Vezes Boa Noite escancara, ainda, uma realidade cruel que muitos ignoram ao mostrar a situação de milhares de pessoas residentes em áreas em constantes conflitos mundo afora – e que, muitas vezes, são ignoradas. Além desta crítica social, o filme toca na ferida ao mostrar o drama da mulher moderna, que mesmo no século XXI ainda tem de escolher entre carreira e família (e, quase sempre, é apenas um dos lados que sai vencedor) – ser uma profissional brilhante ou escolher cuidar da casa e da família, uma tradição cultural que ainda domina muitos países ocidentais. Levanta também um profundo debate sobre a ética da profissão, ao questionar quais são os limites a que deve se expor um trabalhador para conseguir bons resultados, assim como o papel da imprensa diante da censura governamental (se é que podemos chamar dessa forma), que tem o poder de selecionar aquilo que vai ou não ser informado. Com tantas reflexões, Mil Vezes Boa Noite é um filme que vale a pena até mesmo para pautas e conversas posteriores. Apesar de não ser totalmente marcante, o longa de Erik Poppe cumpre muito mais do que sua proposta, se tornando uma obra indispensável para quem curte o cinema e todas as suas discussões.