Oscar 2020: Resumão

Domingão, 09 de fevereiro de 2020. É nesta data que aconteceu a festa de entrega das estatuetas do Oscar, no Dolby Theatre, em Los Angeles (EUA) – em sua 92ª edição.

Esta é a segunda vez consecutiva em que a premiação não contou com um anfitrião único – já que, em 2019, Kevin Hart desistiu de apresentar a cerimônia após tuítes homofóbicos publicados pelo comediante terem caído nas redes sociais. No lugar de um apresentador fixo, a festa foi comandada por um time de estrelas, como Natalie Portman, Timothée Chalamet, Jane Fonda, Diane Keaton, Gal Gadot, Keanu Reeves e muitos outros.

Quem liderou as indicações no ano foi o sucesso Coringa, de Todd Phillips, concorrendo em 11 categorias – inclusive a de melhor filme. Em seguida, com 10 indicações cada, ficaram Era Uma Vez em… Hollywood (de Quentin Tarantino), O Irlandês (da lenda Martin Scorsese) e 1917. O Brasil também foi representado no tapete vermelho com a indicação de Democracia em Vertigem a melhor documentário – mas passou longe: o prêmio ficou mesmo com Indústria Americana.

Janelle Monae abre a festa com um ótimo número musical, precedendo um bem humorado discurso de abertura protagonizado por Steve Martin e Chris Rock. Outro momento bacana foi a apresentação de Into The Unknown, tema de Frozen II, que concorria à melhor canção original e trouxe cantoras de diferentes países. Eminem também subiu ao palco para apresentar Lose Yourself, sua música para o filme 8 Mile (surpreendendo os telespectadores). Já Elton John levou seu segundo Oscar na carreira com (I’m Gonna) Love me Again, por sua cinebiografia Rocketman – após uma apresentação super empolgante. Finalmente, Billie Eilish é convidada ao palco por ninguém menos que Steven Spielberg para homenagear com Yesterday (dos Beatles) os profissionais do cinema que nos deixaram no último ano.

Injustamente, O Irlandês terminou a noite sem nenhum prêmio – fazendo com que Scorsese repetisse exatamente o seu drama de 2003 com O Aviador. Sem muita surpresa, o quarto filme da franquia Toy Story levou como animação. Já Renée Zellweger e Joaquin Phoenix (por Judy: Muito Além do Arco-íris e Coringa, respectivamente) confirmaram as previsões e levaram como suas estatuetas de melhores atuações.

O grande premiado da noite, no entanto, foi o sul-coreano Parasita (de Bong Joon-Ho) que fez história: concorrendo em 6 indicações, ganhou 4 prêmios – incluindo roteiro original, filme em língua estrangeira, diretor e filme (primeiro filme em língua não inglesa a ganhar nesta categoria).

Confira os vencedores da noite:

CATEGORIA VENCEDOR
FILME Parasita
DIREÇÃO Bong Joon Ho (Parasita)
ATOR Joaquin Phoenix (Coringa)
ATRIZ Renée Zellweger (Judy: Muito Além do Arco-íris)
ATOR COADJUVANTE Brad Pitt (Era Uma Vez em… Hollywood)
ATRIZ COADJUVANTE Laura Dern (História de um Casamento)
FILME EM LÍNGUA ESTRANGEIRA Parasita
ANIMAÇÃO Toy Story 4
ROTEIRO ORIGINAL Parasita
ROTEIRO ADAPTADO Jojo Rabbit
FOTOGRAFIA 1917
EDIÇÃO Ford vs Ferrari
EDIÇÃO DE SOM Ford vs Ferrari
MIXAGEM DE SOM 1917
TRILHA SONORA ORIGINAL Coringa
CANÇÃO ORIGINAL (I’m Gonna) Love Me Again (Rocketman)
EFEITOS VISUAIS 1917
FIGURINO Adoráveis Mulheres
DESIGN DE PRODUÇÃO Era Uma Vez em… Hollywood
MAQUIAGEM E CABELO O Escândalo
DOCUMENTÁRIO Indústria Americana
DOCUMENTÁRIO EM CURTA-METRAGEM Learning to Skateboard in a Warzone (If You’re a Girl)
CURTA-METRAGEM The Neighbor’s Window
CURTA-METRAGEM EM ANIMAÇÃO Hair Love

“Sangue Pela Glória”: Faltou Dar a Cara a Tapa…

Escrito e dirigido por Ben Younger, um cineasta de currículo modesto até o momento, Sangue Pela Glória acompanha a incrível história real do pugilista Vinny Pazienza, campeão mundial que, após um grave acidente de carro que o deixou à beira da morte, teve uma das reviravoltas mais inspiradoras do mundo dos esportes.

Definitivamente, Sangue Pela Glória não é o melhor filme do gênero, apesar do incrível potencial de sua trama. Seus principais personagens sofrem de uma intensa falta de desenvolvimento, refletindo diretamente as falhas de seu argumento. Tudo acontece de forma muito rápida: o roteiro é direto e seco, sem muito espaço para aprofundar algumas situações – como a última luta de Vinny, provavelmente a disputa mais importante de sua carreira, mas que recebeu pouco tempo de cena. O único objetivo de Sangue Pela Glória, ao que parece, é narrar fatos, sem se preocupar se o público vai ou não se sensibilizar com o que vê.

01

No entanto, são as performances sólidas de Miles Teller e Aaron Eckhart (este último, quase irreconhecível) que seguram as quase duas horas de filme. Ambos estão muito bons, especialmente o jovem Miles – e arriscaria dizer que, se Bradley Cooper já foi indicado pela Academia a concorrer um Oscar de melhor ator, não me pareceria muita surpresa Miles também receber uma indicação na mesma categoria. É estimulante ver o quanto o ator vem progredindo, apesar das escolhas recentes um tanto desastrosas. Este certamente poderia ser o papel de sua vida e Miles, literalmente, dá seu sangue, sendo praticamente o responsável por toda empatia que nutrimos por Vinny – mas é uma pena que a produção não colabora para fazer este um grande projeto. Com produção executiva de Martin Scorsese, Sangue Pela Glória é o tipo de filme que você de imediato percebe que poderia ser muito maior, mas fica limitado a ser apenas mediano.

“Silêncio”: Um Filme Que Causa Barulho

Falar sobre religião não é fácil. No cinema, este tema, por mais bem tratado que seja, sempre levanta infindáveis debates e discussões – e isso não seria diferente ao falarmos de Silêncio, novo filme de Martin Scorsese, um cineasta cuja maior parte de sua filmografia foi inspirada em seu catolicismo (ainda que não fosse o objeto primário de seus principais títulos). Imersiva em sua plenitude, esta nova obra do diretor de Taxi Driver e Touro Indomável é um dos projetos mais pessoais de Scorsese, que aqui deixa de lado o crime e a máfia (presente em seus melhores longas) para falar sobre a fé e seu questionamento.

01

Silêncio é a adaptação do livro homônimo escrito por Shūsaku Endō em1966, apontado como um dos melhores romances históricos do século XX (apesar de pouco conhecido no Brasil) e abertamente uma das obras literárias mais relidas por Scorsese. A história acompanha a viagem de dois padres portugueses ao Japão, durante o século XVII, para reencontrar seu mestre que, segundo informações, teria renunciado sua fé cristã e estaria vivendo conforme os costumes locais (em uma região onde a prática do cristianismo era severamente repreendida pelas autoridades japonesas).

Amparado pela bela fotografia de Rodrigo Prieto que, em conjunto com o competente design de produção de Dante Ferretti, emprega um tom clássico à toda narrativa (onde cada plano aberto pode ser visto como uma pintura antiga), Silêncio é visual e tecnicamente impecável. As cores dos quadros são ofuscadas por um profundo aspecto de neblina, um recurso que reafirma toda a morbidez da trama. Sonoramente, Scorsese abandona praticamente o uso de qualquer trilha musical, abusando dos sons (revelando um ótimo trabalho de edição e mixagem) e, como sugere o título, do silêncio – como se parar estender a tensão do momento e permitir que o espectador possa refletir sobre aquilo que vê na tela. É importante ainda ressaltar que a direção de Scorsese vai além, se mostrando principalmente na performance espetacular de todo o elenco, em especial do protagonista vivido por Andrew Garfield. É interessante analisar o quanto Garfield se doa a esta personagem, nos entregando uma de suas mais surpreendentes atuações até então. Inegavelmente, o intérprete está em sua melhor fase.

02

Mas é no desenvolvimento de seu drama que Silêncio se torna o que é: um grande filme. A história caminha sem pressa, dando tempo necessário ao longo de quase três horas de duração para que tudo transcorra de forma abrangente. Apesar do possível tom xenófobo que alguns possam alegar (quando a cultura japonesa é um tanto “vilanizada”, enquanto o catolicismo é glorificado), Silêncio é um filme que incomoda e faz o público sair de sua zona de conforto para refletir. Em uma época de discursos religiosos inflamados de ódio, Silêncio convida o espectador a questionar sua fé, independente de religiosidade. A fé não está apenas nas atitudes; ela está presente dentre de nós – e aí somos incitados a buscar entender a fé e questiona-la. Isso fica claro através do personagem Kichijiro, um tipo que não mede esforços para sobreviver, ainda que creia. Essa espécie de “Judas” (esta é uma clara relação estabelecida entre o padre Rodrigues e Jesus) não demonstra lealdade a nada, mas ainda assim não deixa de acreditar. Fica a questão: quais são os limites da fé? Mais do que isso: até onde ela pode chegar sem desrespeitar o outro?

Em produção por mais de 20 anos, Silêncio é um filme que nos oferece uma experiência cinematográfica única de contemplação e reflexão. É verdade que não é uma obra para todo o público, mas é certo que é o projeto da vida seu idealizador, ainda que não seja completamente entendido. Esnobado pela Academia, talvez hoje seja difícil enxergar a dimensão de Silêncio dentro da filmografia de Scorsese, mas certamente ele se perpetuará em um futuro não muito distante como um dos momentos mais importantes da carreira de um dos maiores artistas de cinema em todos os tempos.

“Seremos História?”: Documentário com Leonardo DiCaprio é um Alerta Sobre as Mudanças Climáticas

Desde o início de sua carreira, Leonardo DiCaprio sempre se mostrou um árduo defensor das causas ambientais. Elogiado por inúmeros grupos ambientalistas devido ao trabalho que promove desde então, o intérprete foi nomeado pela ONU, em 2014, seu mensageiro da paz e representante das alterações climáticas no mundo – o que o tornou gabaritado para estrelar o potente documentário Seremos História?.

Com produção executiva de Martin Scorsese e direção de Fisher Stevens, Seremos História? acompanha a jornada de três anos do astro hollywoodiano em busca de respostas às ameaças ao meio ambiente. Durante o período, o ator rodou o planeta, visitando locais onde as mudanças climáticas são mais evidentes e causam maior impacto – como a Flórida, nos EUA, que sofre todos os anos com inundações; a Groenlândia, cujas geleiras se derretem mais rapidamente a cada dia; ou mesmo algumas ilhas do Pacífico, prestes a desaparecer com o aumento do nível do mar.

02

A proposta do documentário é simples: alertar o público de que a situação é crítica e tem de ser discutida com urgência. O texto de Mark Monroe argumenta que os governos mundiais precisam tomar ações imediatas para preservar o meio ambiente. Entre elas, a cobrança de impostos sobre combustíveis que emitem dióxido de carbono; o incentivo ao uso de energias renováveis (como a eólica, por exemplo); e até mesmo uma nova dieta alimentar. A dificuldade, segundo a obra, reside inicialmente no fato de que as informações sobre as alterações do clima são bastante controversas: se por um lado há quem defenda que o aumento da temperatura mundial não é nada perto da evolução da humanidade nos últimos anos, os mais pessimistas acreditam que o momento é crucial: por mais que não possamos frear as consequências, podemos desde já arregaçar as mangas e buscar soluções que ajudem a minimizar os impactos causados.

Uma nação informada é uma nação empoderada.

DiCaprio discute o tema com os tipos mais variados: entre líderes políticos, cientistas e outros, Leonardo entrevista nomes como o presidente norte-americano, Barack Obama, o secretário-geral da ONU e o Papa Francisco, primeiro pontífice a se pronunciar acerca do aquecimento global. Apesar de sua visível falta de domínio do assunto, o ator é corajoso ao expor na tela aqueles que, de acordo com o roteiro, seriam os grandes vilões – incluindo nomes de políticos e empresas do ramo alimentício. Além disso, ele não se intimida ao dizer que o Acordo de Paris (assinado por líderes de vários cantos do mundo) não pode ficar restrito apenas ao papel; pelo contrário, ele deve abranger medidas concretas que precisam ser implementadas o quanto antes.

Já disponibilizado no National Geographic Channel, além de outras plataformas, Seremos História? é, antes de uma produção muito bem feita, um poderoso alerta a todos nós: cada um é responsável, em menor ou maior escala, pelo que acontece no mundo e todos podemos fazer a nossa parte. A conscientização aqui é fundamental. A pergunta do título é interessante e é justamente o que esta produção deseja: nos fazer refletir se, afinal, seremos capazes de salvar o planeta (e a nós mesmos) ou nos deixaremos ser consumidos por nossa própria arrogância.

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo)

Há muito que se falar sobre a extensa filmografia de Martin Scorsese, mas o que mais chama a atenção é sua versatilidade. O cineasta já trafegou por vários gêneros, mas faltava-lhe ainda um filme que pudesse ser assistido por seus filhos – como o próprio argumentou. Este foi o ponto de partida para a concepção de A Invenção de Hugo Cabret – uma requintada produção que atende aos anseios do diretor tanto como pai quanto, principalmente, como cinéfilo que é.

Paris, 1930. Após a morte de seu pai relojoeiro, o jovem e inocente Hugo vai viver na Gare Du Nord, a famosa e exuberante estação de trem da capital francesa – e lá, o órfão passa seus dias acertando os relógios do local e sobrevivendo de pequenos furtos. Além do talento com as engrenagens, Hugo também herdou do pai um misterioso autômato, que ele tenta remontar com as peças roubadas da loja de brinquedos da estação. Um dia, pego em flagrante, Hugo é obrigado a trabalhar no local e lá acaba se tornando amigo da enteada de seu chefe. O que as duas crianças não imaginam é que o dono do comércio é o velho cineasta George Méliès – e entre muitas aventuras, os dois vão se aprofundando cada vez mais no passado daquele homem.

02

Uma característica que me encanta em Scorsese é seu pleno domínio da linguagem cinematográfica. Isto, é claro, só pode ser fruto das incontáveis horas que o diretor passou estudando cinema – Scorsese é sinônimo de erudição cinematográfica, todos sabem disso (não à toa, ele é fundador da The Film Foundation, organização responsável pela restauração de filmes antigos e raros). Perito na área, Martin consegue explorar com propriedade várias vertentes – e em A Invenção de Hugo Cabret não é muito diferente: ele tem pleno poder sobre o que está em suas mãos, mesmo que esta linguagem para ele seja “nova” (afinal, é a primeira incursão de Martin em um filme infantil e rodado em 3D). Contrariando os que duvidavam de sua capacidade de estar à frente de um projeto juvenil, bastam alguns poucos minutos de sua película para entendermos o quão genial é Scorsese.

“O cinema era nosso lugar especial…”

Visualmente arrebatador, A Invenção de Hugo Cabret faturou os principais prêmios técnicos do Oscar. E não é conversa: o longa é realmente majestoso. Com uma fotografia primorosa, dourada e cheia de luz (recriando bem a Paris da época), alguns movimentos de câmera improváveis surgem a todo instante, revelando cenários de tirar o fôlego, que são valorizados com a ótima montagem. Repare, por exemplo, na profundidade da câmera ao capturar a plataforma da estação parisiense. O 3D aqui é fundamental. É interessante analisar que Scorsese o utiliza de forma coerente, não apenas depara ornamentar sua fita, mas principalmente como instrumento indispensável para sua história, o que a enriquece muito mais.

01

Mas, apesar de ser um filme com crianças, A Invenção de Hugo Cabret não é exclusivamente para elas – e é aqui que entendemos sua dimensão. Apaixonado por cinema, Martin Scorsese faz uma bela homenagem aos primórdios desta arte através da figura de Méliès. Quem não o conhece, terá a oportunidade de ser introduzido ao universo deste fantástico artista. Enquanto os irmãos Lumière (os criadores do cinematógrafo, que Méliès tentaria inutilmente adquirir) filmavam banalidades rotineiras, Méliès era um velho conhecido do teatro de variedades – e isto foi essencial para que ele levasse às telas o ilusionismo. Por esta razão, até hoje George Mélièr é considerado o pai dos efeitos especiais. Infelizmente, sua produção de mais de 500 obras se perdeu com o tempo e pouca coisa foi recuperada – mas sua memória ainda vive. Scorsese junta todo este material e cria um filme que engrandece o cinema como arte. Embora existam algumas oscilações no roteiro (que ora foca o garoto, ora foca Méliès – e isso acaba o deixando um tanto desconexo), A Invenção de Hugo Cabret é, de longe, um dos momentos mais inspirados de Martin, repleto de significados e que se revela uma verdadeira ode à sétima arte.

Os Bons Companheiros

Há muitas discussões sobre qual seria o melhor filme de máfia já produzido. Há os que apontam O Poderoso Chefão no topo da lista (ou mesmo sua continuação, de 1974), considerando a obra-prima de Copolla como o maior representante deste tipo de narrativa. De fato, O Poderoso Chefão, como um todo, revolucionou o gênero e tem sua importância cinematográfica indiscutível. No entanto, enquanto O Poderoso Chefão foi responsável por “romantizar” os gangsteres (transformando-os em marginais “elitizados”, de bom coração e que só matavam em nome da honra), Martin Scorsese ia ainda mais fundo em Os Bons Companheiros, mostrando uma faceta cruel e indigesta, como realmente é: violentos e perversos, os mafiosos são bandidos como qualquer outro. É este retrato frio sobre a máfia que torna Os Bons Companheiros um título obrigatório para quem gosta de cinema.

05

Baseado no livro Wiseguy, de Nicholas Pileggi (que dividiu os créditos de roteiro com o próprio Scorsese), Os Bons Companheiros recria a trajetória de Henry Hill no mundo do crime, junto com seus comparsas Jimmy Conway e Tommy DeVito (formado pelo incrível trio Ray Liotta, Robert De Niro e Joe Pesci). Fascinado pela vida luxuosa proporcionada pelos gângsteres de seu bairro, Henry se inicia ainda jovem no crime, trabalhando para o chefão local até se firmar como um dos mais respeitados bandidos das redondezas. Apesar de desaprovar a violência exagerada de seus parceiros, sua ambição e ganância acabam sempre falando mais alto, o que faz com que o rapaz se envolva em situações perigosas – para ele, os riscos de ser preso tornam-se aceitáveis diante de tudo aquilo que pode conquistar. Anos depois, Henry é capturado e condenado, mas decide colaborar com o FBI e entrar para o programa federal de proteção a testemunhas.

Com um estilo quase documental, Os Bons Companheiros causou grande impacto por mostrar o cotidiano sanguinário da máfia, diferente dos filmes anteriores. Com uma habitual narração em off (marca registrada de Scorsese), o longa é dividido em duas partes: na primeira delas, o cineasta faz jus ao título e retrata, com certo clima de nostalgia, toda a intimidade daquele grupo de pessoas, em todo o esplendor de suas riquezas (com seus carros, roupas e mesas sofisticadas, distribuindo dólares por todos os lados); na segunda metade, entretanto, Scorsese nos revela a decadência de tudo aquilo que construiu no ato anterior – e aqui ocorre o choque de realidade. O crime realmente compensa?

04

Este trabalho de “desconstrução” fica ainda mais acentuado por conta da boa edição, que mantém um ritmo alucinante no início e diminui aos poucos no decorrer da fita. A trilha sonora (que é uma explosão de energia) acompanha a montagem e é imprescindível para a história – o desfecho, com o clássico My Way interpretado de maneira contagiante, é de tirar o fôlego. Martin ainda é feliz no uso que faz de sua câmera. Alem de capturar ótimos planos e movimentos, o diretor recorre a um recurso pontual: ele paralisa a cena no ápice da ação, enquanto a voz em off continua seu relato. E não pára por aí: em um dos momentos mais fantásticos, há um plano-sequência que segue o protagonista da saída do veículo até a mesa do restaurante – um marco cinematográfico, amplamente elogiado pelos cinéfilos e pela crítica.

Scorsese também consegue extrair atuações memoráveis de seu elenco. Se De Niro e Liotta são competentes em suas performances, Joe Pesci é, no mínimo, excepcional. Na pele do sádico e irreverente Tommy DeVito, Joe é simplesmente genial – não à toa, o ator levou pra casa um Oscar de melhor coadjuvante por sua atuação (dentre as seis categorias em que o longa concorreu, incluindo filme e direção). Apesar de não faturar os principais prêmios, Os Bons Companheiros ganha um lugar de destaque na filmografia de Scorsese – que, por si, já não precisa provar muita coisa. Com uma introdução estimulante, Os Bons Companheiros é, de longe, o filme definitivo sobre a máfia e uma das melhores produções norte-americanas de todos os tempos.

O Rei da Comédia

Menosprezado pela crítica e esquecido pelo público, O Rei da Comédia abriu o Festival de Cannes em 1983, mas logo foi ofuscado pelos demais clássicos de Martin Scorsese. De fato, lançado logo após Touro Indomável (pelo qual Robert De Niro faturou o segundo Oscar de sua carreira), esta tragicomédia hoje pode ser encarada como um curioso e cruel retrato do mundo das celebridades e a corrida pela fama – o que leva o espectador a se questionar a razão do filme não ser tão celebrado quanto outras obras de seu idealizador.

02

De forma enérgica e inspirada, De Niro encarna o papel de Rupert Pupkin, um aspirante a comediante que deseja ingressar no show business, mesmo não possuindo o talento que acredita. Entre seus devaneios e os gritos da mãe no porão de casa, seu maior sonho é ser o novo “rei da comédia”. Determinado a isso, ele tenta se aproximar de Jerry Langford (Jerry Lewis), um famoso artista do horário nobre, para conseguir lhe apresentar seu número. Aos poucos, Rupert se torna mais obsessivo, ao ponto de sequestrar seu ídolo, exigindo uma aparição em seu programa.

Talvez dois fatos tenham contribuído para que O Rei da Comédia não tenha sido um sucesso instantâneo. O primeiro é que o longa foi rodado logo após o presidente norte-americano Ronald Reagan levar um tiro de um jovem que teria assumido ser fã de Taxi Driver, realizado pouco tempo antes. Em segundo lugar, é verdade que o título engana: O Rei da Comédia não é filme totalmente cômico. Ou sejamos honestos: nas mãos de outros cineastas, talvez até fosse uma produção que buscasse o riso fácil, mas não é o que acontece aqui. Apesar de ter humor negro, sim, e gerar algumas risadas no decorrer da fita, O Rei da Comédia não é engraçado. Scorsese se utiliza da comicidade para gerar uma reflexão sobre a rejeição – e isso dá a O Rei da Comédia um tom melancólico, perturbador, sinistro.

01

Com uma belíssima fotografia (que recria de maneira competente a Nova York da época, com seus talk-shows e luzes que atraem qualquer indivíduo) e uma trilha sonora pra lá de eficiente, Scorsese dá outros rumos ao roteiro bem escrito de Paul D. Zimmerman, tornando O Rei da Comédia um filme repleto de detalhes que o engrandecem à medida que você presta mais atenção na narrativa. Apesar de não ter a comédia que o título sugere e também não possuir a violência das produções anteriores do diretor (que sequer recorre a técnicas excêntricas), O Rei da Comédia é uma implacável sátira ao culto às celebridades e a busca pelo sucesso, que tornam o ser humano refém de suas próprias bizarrices.

Ilha do Medo

Está no meu perfil, pode conferir: Scorsese é um dos meus cineastas preferidos – mas apesar disso, tenho uma relação um tanto conturbada com sua filmografia, algo que percorre a linha tênue entre o amor e o ódio, bem extremista mesmo. Há filmes que eu realmente amo e há outros que eu definitivamente desprezo (e isso vale para qualquer tipo de obra, das mais unânimes àquelas mais pessoais). Daqueles que eu amo, por exemplo: Os Infiltrados, O Lobo de Wall Street, Os Bons Companheiros ou A Invenção de Hugo Cabret. Os que eu deixo de lado: Taxi Driver, O Aviador e Ilha do Medo. Pois é, Ilha do Medo é um filme que me cansa. Embora seja uma das fitas mais elogiadas de Scorsese, admito que este thriller estrelado por Leonardo DiCaprio está longe de me agradar – isto desde sua época de lançamento. A trama acompanha o agente federal Teddy Daniels durante a investigação do desaparecimento de uma assassina internada em um presídio psiquiátrico, localizado na inóspita Shutter Island. Devido a uma tempestade de última hora, o policial é forçado a permanecer no local, enfrentando adversidades e descobrindo verdades mais obscuras do que supunha inicialmente.

01

Está certo que o roteiro de Ilha do Medo é bem estruturado e desenvolve bem sua personagem principal. É meu dever dizer também que, tecnicamente, Ilha do Medo faz jus às melhores películas de um cineasta que é referência até hoje. A fotografia é muito competente e favorece os bons cenários através de seus enquadramentos certeiros. Gosto muito do tom meio noir do filme (é impossível não desconfiar que nosso “detetive” não seja alvo de algum tipo de conspiração, não é?) e também do clima intenso que Scorsese cria, deixando o público sempre na dúvida sobre o que, afinal de contas, é real naquela ilha. Só mesmo um diretor gabaritado como Scorsese para fazer isso com um tema que é, aparentemente, um clichê de gêneros. É interessante notar ainda que Ilha do Medo é um dos momentos mais ousados de Scorsese – o que é reconfortante, especialmente se levarmos em conta que Ilha do Medo foi lançado pouco tempo após Os Infiltrados, pelo qual Martin faturou o merecido Oscar de melhor diretor (ou seja, o artista não se acomodou com o prêmio e continuou produzindo coisas diferentes).

02

Mas, ao longo de quase duas horas e meia de projeção, nem todo mundo está disposto a comprar a ideia de Ilha do Medo. Eu sou um que já o assisti várias vezes, tentando encontrar alguma coisa que me prenda a atenção – e não consigo achar. Se o argumento é bem delineado, falta aquele gostinho a mais neste filme capaz de torna-lo totalmente memorável. Talvez um protagonista mais simpático (e não DiCaprio ligado em modo automático) ou antagonistas melhores; quem sabe uma trilha mais presente e marcante; ou até mesmo cenas mais “digeríveis” – e não algumas extensas sequências que dão sono ou flashbacks usados a exaustão. Ilha do Medo não é ruim – e há pessoas que, de fato, embarcam com tudo nesta aventura. Bom, acho que este é o segredo: talvez seja necessário que o espectador entre na história. Resta saber se ele vai ter muita disposição pra isso. De minha parte, dispenso…

Politicamente Incorreto, Perfeitamente Eletrizante: Assim é “O Lobo de Wall Street”

Cá entre nós: com mais de 70 anos de idade, Martin Scorsese alcançou um patamar de excelência onde o cineasta já não precisaria mais provar nada a ninguém. No entanto, o diretor continua na ativa – e, felizmente, ainda consegue surpreender seu público a cada novo filme lançado. Após o excelente A Invenção de Hugo Cabret, Scorsese apresenta o politicamente incorreto O Lobo de Wall Street, seu mais novo longa, que tem gerado diversas polêmicas ao redor do mundo mas comprova o talento de uns dos mais tradicionais nomes da Nova Hollywood.

02

O Lobo de Wall Street é a adaptação para o cinema da autobiografia do corretor da bolsa novaiorquina Jordan Belfort, que aos 26 anos já era uma das figuras mais ricas dos EUA. O filme mostra como Jordan ficou milionário em pouco tempo, montando uma corretora de investimentos com atividades suspeitas, até sua prisão na década de 90. Scorsese narra a história de ascensão e queda da dupla formada por Belfort e Danny Porush (melhor amigo do corretor, que abandonara seu emprego como vendedor de móveis para embarcar no ramo dos investimentos), explicitando seus escândalos, polêmicas, fraudes, corrupção (que envolvia até a máfia) e, principalmente, seus excessos.

Aliás, excesso é um termo que pode ser aplicado bem em O Lobo de Wall Street: tudo é perfeitamente exagerado. O excesso não é o limite, sempre haverá mais, a começar pelas suas longas três  horas de duração – apesar do ritmo frenético da trama (que não deixa você, espectador, se cansar em nenhum momento), temos que reconhecer que estamos diante de um filme com exatos 179 minutos de duração. Com tanto tempo disponível para se contar uma boa história, Scorsese não poupou os detalhes e fez dos excessos o maior triunfo de O Lobo de Wall Street: quando falamos que os personagens estão fazendo uma orgia, eles realmente estão fazendo uma orgia; se falar que Jordan ficou tão rico que jogava dinheiro fora, é porque ele realmente descartava dólares no lixo como lenços de papel; quando dizemos que Jordan consumia drogas demasiadamente, é porque ele praticamente só ficou sóbrio nos primeiros 15 minutos de filme (aliás, em uma das melhores e mais criativas sequências, Jordan aspira cocaína no traseiro de mulher com canudinho – cena que foi eliminada em diversos países).

05

Alem da cena citada acima, alguns países se sentiram incomodados também com outras diversas sequências (especialmente, uma que envolvia uma orgia gay e outra em que um dos personagens se masturbava em público). Nos Emirados Árabes (país com a censura mais profunda até o momento), o longa teve 45 minutos a menos do que a versão original – isso sem contar que Scorsese também já havia adequado o filme ao território norte-americano para que a censura não caísse matando. Isso não foi o suficiente para que o filme não fosse repleto de cenas de sexo e palavrões (só a expressão fuck foi usada mais de 550 vezes!), o que já seria o suficiente para levantar a bandeira da censura em países mais conservadores. Houve até quem se incomodasse com uma cena em que é praticado um jogo de tiro ao alvo com anões – sugerindo que o longa faça apologia à ofensa de minorias.

01

Esses detalhes deixam o filme politicamente incorreto, sim, mas simetricamente eletrizante: tudo funciona bem. Da trilha sonora (que Scorsese, para variar, escolhe muito bem) à rápida edição e fotografia iluminada, O Lobo de Wall Street ainda traz um elenco inspirado. O destaque, obviamente, fica por conta de Leonardo DiCaprio que, no papel de Jordan, tem uma das melhores atuações de sua carreira. Se DiCaprio nunca faturou um Oscar ao longo de sua carreira, essa é a hora. A cena em que sofre uma paralisia e tenta entrar em sua Ferrari faz a platéia chorar de rir com tamanha tragédia. Seu personagem promove discursos tão encorajadores que a platéia se sente motivada junto com todos seus funcionários. Somos capazes de amar Jordan, mesmo detestando sua vida abominável. Jonan Hill, que recebeu uma indicação ao prêmio de melhor coadjuvante, também está divertidíssimo, fugindo daquele estereótipo que o vem acompanhando nos últimos trabalhos e criando um Danny tresloucado. O restante do elenco mantem o nível da trama e deixam o filme muito mais divertido de se ver.

04

Narrado em voice over – recurso típico de Scorsese, mas nem por isso banalizado – , O Lobo de Wall Street é um raro caso de filme que funciona bem em todos os aspectos. Não à toa, a obra recebeu cinco indicações ao Oscar deste ano (melhor filme, melhor direção, melhor ator para DiCaprio e coadjuvante para Jonan e melhor roteiro adaptado) e tem fortes chances de sair premiado em alguma categoria. Polêmico do início ao fim, O Lobo de Wall Street traz excelentes atuações dentro de um roteiro com um humor inteligente e cheio de críticas, alem de muita orgia, drogas e dinheiro. Com um ritmo eletrizante, O Lobo de Wall Street é um filme que faz jus ao nome do diretor que carrega – e a todos os elogios que vem recebendo.

Os Infiltrados

Repare: qualquer lista de melhores filmes do cinema inclui alguma obra de Martin Scorsese. O cultuado cineasta é um dos maiores ícones da história do cinema – sinônimo de erudição e conhecimento cinematográfico (além de algumas polêmicas pessoais). No entanto, foi apenas com Os Infiltrados, de 2006, que a Academia reconheceu (finalmente) o talento do diretor, lhe conferindo a estatueta de melhor direção após 5 indicações: Touro Indomável (1980), A Última Tentação de Cristo (1988), Os Bons Companheiros (1990), Gangues de Nova York (2002) e O Aviador (2004).

Os Infiltrados é a versão de Scorsese para Infernal Affairs (“Conflitos Internos”), uma produção de Hong Kong de 2002, dirigido por Alan Mak e Andrew Lau. Enquanto no filme original a história é centrada na guerra entre a polícia e os criminosos de Hong Kong, Scorsese (ao lado de William Monahan) adapta a narrativa, transformando-a em um sanguinário combate entre a polícia de Boston e a máfia irlandesa. No entanto, a estrutura da narração é basicamente a mesma: um policial na gangue de bandidos e um bandido dentro da corporação policial.

02

Na introdução de Os Infiltrados (que dura pouco mais de 18 minutos), somos apresentados a três personagens centrais. Entre eles, está Frank Costello (Jack Nicholson), mafioso irlandês que apadrinha o garoto Colin Sullivan (vivido, quando adulto, por Matt Damon). Inteligente e bom aluno, Sullivan se forma com méritos na academia de polícia, conquistando uma posição de destaque dentro da corporação – e se tornando o informante ideal de Costello. Paralelamente, conhecemos também Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), policial recém formado cuja família com antecedentes criminais e ligações com a máfia o tornam a melhor escolha da polícia para se infiltrar no grupo de Costello.

03

Tanto Costigan quanto Sullivan passam por um questionamento moral ao longo da trama: até quando conseguirão esconder sua identidade e, principalmente, seu caráter sem arriscar suas vidas? Para protagonizar personagens com esse dilema, Scorsese consegue extrair o melhor da atuação de DiCaprio e Damon. O primeiro é instável emocionalmente – o que reflete claramente o inferno em que vive ao se manter incluso no grupo de bandido – enquanto o segundo é um tipo dissimulado que causa uma espécie de ódio imediato no público. Em ambos os casos, tanto DiCaprio quanto Damon mantém atuações eficientes ao longo de toda a trama. No entanto, em filme com Jack Nicholson, é difícil ser melhor do que… Jack Nicholson. Na primeira parceria com Scorsese, Jack cria um tipo brilhante – e, certamente, um de seus melhores papéis no cinema. Na pele de Costello, ele chama a atenção à cada aparição, disparando frases antológicas (“A Igreja diz que podemos ser policiais ou criminosos. Mas com uma arma na cabeça, que diferença isso faz?” ou o prólogo “Eu não quero ser um produto do meio ambiente. Eu quero que o meio ambiente seja um produto meu.”). Vale ainda citar a participação de Mark Wahlberg, como um agente estressadinho que traz o grande (e surpreendente) desfecho do filme.

01

Mantendo o mesmo estilo “urbano” de alguns de seus clássicos, como Cassino ou Os Bons Companheiros, tecnicamente, além do roteiro alinhado, deve-se destacar a bela fotografia, marcada pelo uso constante de elementos sombreados (Costello na introdução do filme, por exemplo, só é mostrado através de sombras) que deixam as imagens ainda mais reais. Como se não bastasse, Scorsese ainda seleciona uma trilha sonora que, assim como em seus maiores clássicos, tornam as ações ainda mais excitantes. Excepcional, Os Infiltrados é um dos marcos da carreira de Scorsese, na mesma linha de seus antigos clássicos, voltando um pouco às origens de suas primeiras produções. Com uma direção competente e um roteiro eletrizante, o público chega a ignorar o fato de que está assistindo a um filme com mais de duas horas e meia de duração. No melhor padrão Scorsese (sim, ele merece isso…), Os Infiltrados é um filme arrebatador, nos contagiando com sua explosão frenética de corrupção, drogas e muita violência inteligente.