Os 10 Maiores Filmes da Década

Hoje, 31 de dezembro de 2019, encerramos uma década que se mostrou bastante produtiva para o cinema mundial.

Fomos apresentados a grandes obras – algumas unânimes, outras que geram polêmica e dividem opiniões, mas a verdade é que os últimos 10 anos nos trouxeram ótimos títulos que certamente marcaram a vida de muitos cinéfilos.

Resolvi, portanto, listar a seguir aqueles que eu considero os 10 maiores filmes desta década. Exceto os três primeiros nomes, os demais não seguem  uma ordem específica de ‘classificação’, não obedecendo a qualquer sequência.

Confira e deixe sua opinião:

10. MÃE! (mother!)
Direção: Darren Aronofsky
EUA – 2017
Das obras mais controversas da década, Mãe! Dividiu opiniões por onde passou: muitos consideraram um clássico instantâneo, enquanto outros torcem o nariz para este filme incomum de Aronofsky. Um terror psicológico de primeira, repleto de simbologias e com múltiplas interpretações.

09. FAUSTO (Faust)
Direção: Aleksandr Sokurov
Rússia – 2011
Brilhante releitura livre da obra de Goethe pelas mãos do mestre russo Sokurov (de Arca Russa). Um filme complexo e difícil, porém profundamente artístico e estilizado.

08. AMANTE POR UM DIA (L’Amant d’un Jour)
Direção: Philippe Garrel
França – 2017
Segundo capítulo da trilogia iniciada por O Ciúme e encerrada com À Sombra de Duas Mulheres, que versa sobre o amor. Philippe Garrel, um dos remanescentes (tardio, é verdade) da nouvelle vague, entrega uma obra esteticamente atraente, um drama bem desenvolvido e um filme que é um deleite.

07. LEVIATÃ (Leviafan)
Direção: Andrei Zvyagintsev
Rússia – 2014
Uma obra corajosa e que vem como um soco no estômago, Leviatã é um filme com inúmeras camadas – e que nos surpreende em cada uma delas. Excelente crítica à sociedade moderna.

06. THE SQUARE – A ARTE DA DISCÓRDIA (The Square)
Direção: Ruben Östlund
Alemanha, Dinamarca, França, Suécia – 2017
Divertido, constrangedor, abusivo – esses são alguns dos melhores adjetivos para esta obra primorosa do sueco Ruben Östlund. Em minha opinião, o mais justo vencedor de Cannes dos últimos anos.

05. AMOR (Amour)
Direção: Michael Haneke
Alemanha, Áustria, França – 2012
Um filme impactante e cruel, porém necessário. Traz a melhor atuação da carreira da saudosa Emmanuelle Riva, esnobada covardemente no Oscar naquela ocasião.

04. ADEUS À LINGUAGEM (Adieu au Langage)
Direção: Jean-Luc Godard
França – 2014
Reinvenção de Godard. Uma aula de experimentação e técnica do veterano que deu uma nova roupagem ao cinema em sua época com a nouvelle vague.

03. PAZ PARA NÓS EM NOSSOS SONHOS (Ramybe Musu Sapnuose)
Direção: Sharunas Bartas
França, Lituânia – 2015
Título pouco conhecido, Paz Para Nós em Nossos Sonhos possui uma beleza ímpar: o longa de Sharunas Bartas é repleto de simbologias, além de nos proporcionar uma experiência sensorial única.

02. LA LA LAND: CANTANDO ESTAÇÕES (La La Land)
Direção: Damien Chazelle
EUA, Hong Kong – 2016
Damien Chazelle surgiu com o seu inigualável Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014), já chamando a atenção do público e da crítica. La La Land é sua obra-prima, um drama musical rodado numa Los Angeles colorida e iluminada, que embala os sonhos dos apaixonados ao som de um jazz de primeira. Uma verdadeira ode ao gênero musical!

01. A ÁRVORE DA VIDA (The Tree of Life)
Direção: Terrence Malick
EUA – 2011
O topo da lista merece, em minha opinião, ser ocupado por aquele que é a grande obra-prima do cinema na década: A Árvore da Vida, momento máximo e sublime de Terrence Malick. Da fotografia excepcional de Emmanuel Lubezki à trilha sonora arrebatadora de Alexandre Desplat, A Árvore da Vida é um filme contemplativo, sensorial e espiritual, capaz de proporcionar experiências únicas.

10 Filmes Imperdíveis da 42ª Mostra Internacional de Cinema de SP

Já faz parte do calendário paulista: outubro é mês da Mostra Internacional de Cinema de SP! Neste ano, a edição acontece entre os dias 18 e 31 de outubro e abrangerá mais de 30 espaços, entre cinemas, museus e outros locais culturais da capital paulista. No total, serão mais de 300 títulos das mais variadas cinematografias e países – incluindo a seleção de 18 obras já indicadas por seus respectivos países para concorrerem a uma vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Além disso, a Mostra trará mais de 20 filmes em realidade virtual. Entre os títulos, está o francês A Ilha dos Mortos, animação de Benjamin Nuel, premiada no Festival de Veneza 2018 com o Leão de Ouro pelo uso da técnica. No espaço, haverá também uma instalação para celebrar a obra Chalkroom, produzida em VR (virtual reality) pela artista multimídia Laurie Anderson (que assina o pôster e a vinheta do festival).

Para dar aquela forcinha, selecionei aqui 10 filmes imperdíveis desta Mostra:

A CASA QUE JACK CONSTRUIU (The House That Jack Built, de Lars Von Trier)
Este é o mais novo filme do controverso Lars Von Trier, que passou por diversos festivais mundiais e dividiu opiniões (em Cannes, por exemplo, o filme foi tanto vaiado quanto ovacionado).

Cena de “A Casa que Jack Construiu”, de Lars Von Trier.

AS FAVORITAS (The Favourite, de Yorgos Lanthimos)
As Favoritas  rendeu a Olivia Colman o premio de melhor atriz no Festival de Veneza, por sua atuação como a Rainha Anne durante a Inglaterra do século XVIII em guerra com a França.

ASSUNTO DE FAMÍLIA (Manbiki Kazoku, de Hirokasu Kore-eda)
Além de ser a aposta japonesa ao Oscar de melhor filme estrangeiro, Assunto de Família levou a Palma de Ouro em Cannes nesta última edição.

EM CHAMAS (Beoning, de Chang-Dong Lee)
Em Chamas  não faturou a Palma de Ouro este ano, mas foi uma das obras mais elogiadas do festival e é o grande favorito ao Oscar de filme estrangeiro no próximo ano.

GUERRA FRIA (Zimma Wojna, de Pawel Pawlikovski)
Guerra Fria  também passou por Cannes este ano, onde arrancou elogios da crítica. Além disso, o filme é dirigido por Pawel Pawlikovski – que faturou a estatueta de melhor produção estrangeira com Ida.

IMAGEM E PALAVRA (Le Livre d’Image, de Jean-Luc Godard)
Uma das surpresas de Cannes foi Imagem e Palavra, novo trabalho da lenda viva do cinema Jean-Luc Godard. Não é preciso falar mais nada.

INFILTRADO NA KLAN (BlacKkKlansman, de Spike Lee)
Um dos grandes favoritos nas principais categorias do Oscar no próximo ano, Infiltrado na Klan foi um dos destaques de Cannes e traz Spike Lee na direção.

O GRANDE CIRCO MÍSTICO (O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues)
Apesar de não ter sido muito bem recebido nos festivais em que participou, O Grande Circo Místico  é o novo filme de Cacá Diegues – e representante oficial do Brasil ao Oscar.

Cena de “O Grande Circo Místico”, de Cacá Diegues.

ROMA (Roma, de Alfonso Cuarón)
Dirigido pelo oscarizado Alfonso Cuarón, Roma  foi o primeiro filme produzido pela Netflix a levar o Leão de Ouro, em Veneza.

THE MAN WHO KILLED DON QUIXOTE (The Man Who Killed Don Quixote, de Terry Gilliam)
Após anos e inúmeras tentativas fracassadas, Terry Gilliam conseguiu finalizar sua obra (considerada “maldita” pelos mais supersticiosos) – cuja produção conturbada nos anos 90 virou até documentário.

Adeus à Linguagem (Adieu au Langage)

Há filmes que não são feitos para ser entendidos. Eles são produzidos não para contar uma história, informar ou mesmo trazer algum tipo de questionamento; eles apenas existem para ser contemplados, pelo prazer exclusivo da arte. Se o espectador buscar alguma compreensão, as chances de sair do cinema frustrado serão grandes, pois a película está ali na tela para se admirar. É exatamente assim que vejo Adeus à Linguagem, novo filme do mestre da nouvelle vague Jean-Luc Godard.

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Ao longo de pouco mais de uma hora de duração, Adeus à Linguagem apresenta a trama de um homem e uma mulher, um casal cujo maior desconforto na relação é a falta de comunicação. Eles não se compreendem – e o cachorro é o símbolo deste relacionamento. É interessante, no entanto, analisar a forma como Godard conduz este argumento. A comunicação do filme é totalmente visual – e é justamente isso que dificulta um entendimento maior da fita. Em determinado momento, Godard diz que “as duas maiores invenções são o zero e o infinito” – frase que traduz bem a proposta do artista de nos fazer entender algo que, na realidade, não está ao nosso alcance.

Conforme o próprio título sugere, Godard quebra a narrativa convencional e constrói uma nova linguagem, cuja força reside na mistura competente de som e imagem. O admirável aqui é o domínio de Godard como cineasta: sua destreza é impecável. Como uma criança com um brinquedo na mão, assim é Godard como diretor, buscando os mais diferentes recursos e manejando-os com total desenvoltura e simplicidade (para se ter noção, até mesmo uma câmera de celular é material de trabalho para Godard). Para tornar a experiência ainda mais agradável, o uso do 3D é excepcional – e, para um profissional que nunca utilizou tal técnica, Godard proporciona algo bastante satisfatória.

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Infelizmente, no entanto, Adeus à Linguagem é ainda um filme de Jean-Luc Godard. E o que isso quer dizer? Bom, se o cineasta sempre foi sinônimo de um cinema “difícil”, é fato que Adeus à Linguagem não é um de seus trabalhos mais fáceis. De longe, Adeus à Linguagem é um de seus filmes mais experimentais, ousados e emotivos, apesar de conter vários elementos comuns à sua filmografia (como a trilha descontinuada, os personagens que conversam fora de enquadramento ou os diálogos cheios de reflexões). Não à toa, Adeus à Linguagem foi considerado a melhor produção de 2014 pelos críticos norte-americanos, além de ser ovacionado em Cannes. Mas a verdade é que o público “comum” tende, com toda razão, a desprezar uma obra como esta. Para os cinéfilos, entretanto, Adeus à Linguagem comprova a maestria de um Godard que merece ser apreciado.

Uma Mulher é Uma Mulher

Uma Mulher é Uma Mulher é, de longe, um dos momentos mais agradáveis da obra de um cineasta cujo nome é comumente acompanhado dos adjetivos “genial” e “chato”. Segundo filme de Jean-Luc Godard, lançado após o unânime Acossado, de 1960, Uma Mulher é Uma Mulher é uma comédia deliciosa onde o diretor abusa das experimentações técnicas enquanto critica a supervalorização das atrizes no cinema (o tipo femme fatale) – revelando a clara intensão de cutucar os valores da estética cinematográfica daquela época. Iniciando sua próspera e bem sucedida parceria com Godard, a modelo Anna Karina (que, na ocasião, já era companheira do artista) é a personificação da jovialidade e beleza na pele de Angela, uma inocente e sonhadora stripper que vive pressionada por dois homens: seu noivo Émile e o amigo de seu companheiro, Alfred, apaixonado pela jovem.

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Apesar de não ser necessariamente “engraçado”, o tom leve e pastelão do excelente roteiro do próprio Godard faz com que Uma Mulher é Uma Mulher seja um de seus filmes mais “digeríveis”. A narrativa (com algumas sequências puramente nonsenses) se desdobra de forma bastante natural, como se todos os envolvidos na produção estivessem a vontade com o que acontece à sua volta. Isso fica bem perceptível, por exemplo, nas tomadas externas: o público tem a nítida sensação de que as cenas são gravadas sem prévio ensaio, como se Godard colocasse a câmera nas mãos, escolhesse o lugar e dissesse: “É aqui! Vamos filmar!”. Isso torna muito mais fácil a proposta de despersonificar a imagem feminina no cinema da época (no ápice desta desconstrução, Angela quer engravidar, mas fica em dúvida sobre qual dos dois homens deve escolher).

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Godard brinca com a montagem do longa: o filme possui algumas sequências mais extensas, mas pára também com cortes secos e rápidos, onde é visível a intensão do cineasta de produzir um efeito humorístico, ou através dos diversos instantes em que os atores fazem seus discursos com os olhares fixos na câmera, como se falando diretamente ao espectador. Da mesma forma, a fotografia merece seu destaque, com o bom uso de cores e uma cenografia inteligente que realça os tons, especialmente nos ambientes internos, como no apartamento do casal principal. Aliás, o elenco é primoroso: se por um lado temos a musa godardiana Anna Karina como um furacão em cena, temos um Jean-Claude Brialy irresistivelmente atraente como Émile – franzino, com certo charme másculo sem parecer ogro. Já Jean-Paul Belmondo cumpre bem a tarefa de antagonista, mostrando boa sintonia com os protagonistas da trama. Já a trilha sonora, é um caso à parte: totalmente descontinuada e inusitada, uma marca registrada das produções do diretor.

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Em determinado momento, os personagens se questionam: seria essa história uma comédia ou uma tragédia? Com um desfecho inteligente, Uma Mulher é Uma Mulher não fez tanto alarde em seu lançamento, principalmente na França. Por questões que podem parecer pouco óbvias, o filme foi um sucesso fora de seu país de origem, mas hoje é saudado como uma das melhores amostras do cinema de Godard, praticamente obrigatório para os que desejam conhecer sua vasta filmografia. Jean-Luc faz aqui um trabalho experimental, abusando de tudo o que tem à sua disposição para contar as aventuras deste incomum triângulo amoroso. Não à toa, essa película influenciou (e muito) autores dessa nova e atual fase do cinema francês, como François Ozon ou Christophe Honoré (repare o quanto Bem Amadas, deste último, tem traços evidentemente inspirados no filme godardiano). Uma Mulher é Uma Mulher é ousado, inovador e artisticamente belo – como tudo aquilo que Godard vem fazendo durante sua carreira.

Tempo de Guerra

01Tempo de Guerra é considerado por muitos um filme “menor” dentro da amplamente elogiada filmografia de Jean-Luc Godard. Talvez exista uma razão para isto: Tempo de Guerra foi concebido na década mais fértil do cineasta, onde nasceram clássicos como Uma Mulher é Uma Mulher (1961), Viver a Vida (1962), O Bando à Parte, Uma Mulher Casada (1964) e O Demônio das Onze Horas (1965). Lançado em 1963 (mesmo ano em que Brigitte Bardot estrelava o ótimo O Desprezo – o que por si só já seria suficiente para ofuscar qualquer outra coisa na Terra, cá entre nós…), Tempo de Guerra se mostra, no entanto, um longa que consegue amplificar seu valor como produto cinematográfico, indo muito além de sua projeção e se tornando um momento surpreendente da obra godardiana.

O filme se passa em um país qualquer que está em período de guerra. Em uma pequena e isolada casa, moram uma mãe, sua filha e seus dois filhos, que um dia recebem a visita de militares, informando-lhes que o Rei convocou os homens da família para servir no conflito. Deslumbrados com a promessa de riquezas e aventuras, os dois moços partem rumo ao desconhecido, enquanto as mulheres ficam à sua espera – e também na esperança de dias melhores.

Godard mostra a guerra com bastante frieza, sem a menor dramatização dos personagens – o que compromete, em parte, a empatia do público pela história. Não há sentimentos, comoções, exageros; não há um drama maior que justifique a narrativa. Há apenas os fatos, retratando os horrores da guerra de forma mais fria possível. Os atos praticados são tratados com simples naturalidade, como se tudo fizesse parte de uma rotina previsível e já batida. O cineasta consegue estender ainda mais esta condição através de suas cenas filmadas de longe, sem closes ou tomadas mais intimistas, como se não tivesse a menor intenção de extrair algum tipo de emoção dali.

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É Godard criticando de forma inteligente a farsa da guerra desnecessária, que dizima vítimas, independente do lado em que estão lutando. Repleto de humor negro e ironia sadia, o roteiro aposta neste drama fictício para abordar a questão social da guerra – há realmente um vencedor? Godard satiriza o ser humano diante da calamidade da guerra, com toda sua ambição, imbecilidade e maldade, revelando tudo o que há de pior neste terreno: a violência desenfreada e sem fundamento, a estupidez e despreparo dos soldados, a covardia da nação. Assim, engana-se pensar que Tempo de Guerra é pacifista, antibélica: é uma obra sobre a idiotice humana. Os recrutados encaram a guerra como um sonho, uma aventura, uma brincadeira quase infantil. Longe de serem heróis com algum propósito, eles são seres ingênuos, até mesmo alienados, que aceitam passivamente sua realidade sem questionar toda a selvageria em que estão inseridos.

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No ponto mais memorável de Tempo de Guerra, os filhos voltam para casa com uma maleta onde, dizem os rapazes, estão todas as riquezas acumuladas por eles durante a empreitada. Aqui ocorre a cena mais marcante de toda a projeção: dentro da mala, estão cartões postais com fotos do que eles acreditam serem títulos de propriedade. Tempo de Guerra é uma fita que se inicia aparentemente simples, mas expande seu significado, especialmente em seus instantes finais – quando Godard nos oferece a oportunidade de despertar inúmeras reflexões, mas não emoções. Godard nos propicia uma interessante denúncia sobre os absurdos dos conflitos armados e não a romantização deles, tão comum em produções deste gênero. Atual em sua plenitude, Tempo de Guerra é por vezes desprezado, mas sem dúvida, é um filme imprescindível.

Alphaville (Alphaville, une Étrange Aventure de Lemmy Caution)

É difícil imaginar um filme de ficção científica sem efeitos especiais soberbos, trilha sonora atordoante ou cenários exuberantes e excêntricos – mas é justamente isso que Godard, maior nome da nouvelle vague francesa, consegue fazer em Alphaville, obra de 1965. Abandonando os aspectos técnicos mais clichês deste gênero, o cineasta sabiamente recorre às locações de sua velha conhecida Paris, criando em tela a visão futurística de um sistema totalitário e que fica acentuada pela ótima fotografia em preto-e-branco de seu parceiro Raoul Coutard – valorizando a frieza de prédios comerciais, cômodos de hotel e as luzes de neón que enfeitam a cidade.

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Rodado em um futuro não especificado e com sequências que poderiam ser consideradas atemporais, a trama se passa em Alphaville, uma cidade (ou um planeta) governada por um computador que tornou crime capital toda e qualquer emoção verdadeira. Esta ditadura é responsável ainda por execuções em massa, realizadas de forma quase ritualística à beira de uma instigante piscina – onde as vítimas são lá jogadas à mercê da própria sorte. Se passando por um repórter, o agente secreto Lemmy Caution tem a missão de encontrar o cientista Von Braun e persuadi-lo a voltar aos “planetas exteriores” – mas neste meio tempo, Caution tenta destruir a super máquina (inserindo-lhe poesia, veja você…), enquanto seduz e desperta sentimentos adormecidos na frágil Natacha, a filha de Von Braun.

Inicialmente, Alphaville seria uma espécie de sátira ou paródia aos filmes de ficção científica da época – porém, é interessante notar como a obra de Godard é uma genuína produção do gênero, capaz inclusive de influenciar obras posteriores (como Fahrenheit 451, de Truffaut, ou o amplamente repercutido 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick). No entanto, Alphaville se estende ao longo de pouco mais de uma hora e meia de duração, como se a trama estivesse esgotada e nada mais nos restasse a não ser seus arrastados diálogos. O casal de protagonistas também não é dos mais carismáticos: Eddie Constantine é quase apático, enquanto Anna Karina perde muito de seu brilho natural na pele de Natacha Von Braun. Alphaville tem seus méritos quanto cinema devido, sobretudo, às sábias escolhas de Godard, mas está longe de ser algo memorável para o espectador comum.

Viver a Vida

Nana é uma jovem parisiense como tantas outras na década de 60. Outrora casada e mãe de uma criança (por quem ela aparentemente pouco se importa), ela abandona a família para buscar o sonho de ser uma atriz de sucesso. Mas a nova vida não é fácil: para se sustentar, a moça tem de trabalhar como atendente em uma loja de discos. Com o salário pequeno e afundada em dívidas (chegando até a ser expulsa de casa por não pagar o aluguel), Nana precisa de dinheiro – e para conseguir a jovem decide se prostituir. É quando ela reencontra uma antiga amiga, que a apresenta a um homem que acaba se tornando seu cafetão, abrindo uma passagem progressiva e sem retorno ao mundo da prostituição.

01Com direção e roteiro assinados por Jean-Luc Godard, Viver a Vida é considerado um dos trabalhos mais fáceis do cineasta – praticamente um cartão de visita de um diretor que divide opiniões (há quem o considere um gênio, há os que o chamam de “chato” sem medo). Segmentado em doze atos distintos, cada um deles traz consigo as palavras-chaves do episódio em questão, o que ajuda a compor a narrativa e evitar surpresas nas ações (não que isso, obviamente, torne o filme previsível). Os diálogos, no entanto, são carregados de fundamentos filosóficos – nitidamente, por exemplo, é possivel enxergar inúmeras referências a Bertold Brecht no decorrer da fita, além de diversas passagens com reflexões existencialistas sobre a percepção do homem sobre si mesmo diante da realidade que o cerca.

A caracterização de Anna Karina (que durante anos foi musa absoluta de Godard) é bastante eficiente. Ela é fria, seca, direta com tamanha precisão que é impossível criarmos qualquer tipo de compaixão por sua personagem. É interessante analisar seu perfil sedutor no decorrer da trama: quase uma femme fatale com tamanha frieza, porém carregando uma melancolia e tristeza no olhar que contrapõe tal imagem. Curiosamente, dizem as más línguas que a atriz não teria aprovado o produto final, chegando a afirmar que Godard a havia deixado propositalmente “feia” – o que, de longe, é pura fantasia, já que Anna está estonteante em cena e nós, como telespectadores, temos o mesmo olhar de Godard sobre sua musa: encanto e mistério, ambos lado a lado, tornando Nana um tipo deliciosamente indecifrável.

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A expressão francesa “vivre sa vie” (que dá título ao longa) é quase uma tradução literal do que temos à nossa frente. Há quem afirme que Godard não faz filme para os meros mortais – e, sim, isso fica claro em alguns momentos, onde o cineasta traz suas arrastadas discussões filosóficas, seus atores fora do plano ou de costas para o público ou mesmo com o foco em um personagem enquanto o outro fala. Mas Viver a Vida é um retrato frio e indigesto da prostituição, com uma visão sob certo aspecto “voyeurística”, como se nós mesmos, espectadores, estivéssemos manejando a câmera – sensação extendida pela ótima fotografia em preto e branco de Raoul Coutard, velho parceiro de Godard. Em suma, Viver a Vida poderia ser um dramalhão daqueles, mas nas mãos de um gênio como Jean-Luc se tornou uma das obras mais significativas de sua vasta e cultuada carreira – um filme indispensável.